A paraense Symmy Larrat. Foto: Marcelo Casal Jr./Agência Brasil
política

‘Governo Bolsonaro é inimigo, e a gente tem que destruir’, diz Symmy Larrat

Presidenta da ABGLT fala sobre cenário político nacional e pautas da população LGBTI+ na nova década

Eleita em 2017 para a presidência da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), Symmy Larrat é a primeira travesti a ocupar a liderança de uma das principais entidades representativas do movimento LGBTI+ do Brasil, fundada em 1995.

Incômoda para algumas pessoas, mas necessária para a coletividade, como afirma a própria presidenta sobre sua gestão, a ABGLT tem buscado aproximar cada vez mais as pautas de gênero e sexualidade dissidentes a agendas progressistas, como grupos feministas e organizações de educação, do campo, pelo desencarceramento e antiproibicionistas.

“Eu sou defensora da coletividade desde quando comecei a militar”, diz ela. “Acho que é muito legítimo que haja organizações específicas, saúdo a todas e quero ajudar a construir as que vierem. Mas eu acredito que todas essas precisam de uma coletividade ainda maior. Achava que era necessário e simbólico demais [estar na presidência da ABGLT]. E sabia que ia ser incômodo demais, porque o movimento GGG não quer abrir mão dos privilégios.”

Paraense radicada em São Paulo, Symmy Larrat é formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pará, em Belém, cidade onde também começou a militância política. Filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), ela foi a primeira travesti coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, no governo de Dilma Rousseff (PT), e também coordenou o programa Transcidadania, da prefeitura de São Paulo, na gestão de Fernando Haddad (PT).

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Nesta entrevista à Diadorim, feita por vídeo chamada, Larrat comenta a trajetória e os desafios à frente da ABGLT, analisa os resultados das eleições municipais de 2020, com expressiva presença de LGBTIs, e aponta quais devem ser as principais pautas do movimento nesta nova década: abrigamento, educação e empregabilidade – todas elas interseccionadas com a defesa da democracia e dos direitos humanos.

A ativista também fala sobre o contexto político nacional e os pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Trata-se de uma pessoa que coloca em risco a vida das pessoas, estimula ações que vão colocar em risco a vida das pessoas, ele ameaça questões democráticas desse país, toma decisões que são mais militaristas do que representa as relações democrática e ignora a violência que sofremos”, diz Symmy Larrat.

DIADORIM – Há uma crítica recorrente entre LGBTIs sobre a presença ainda muito arraigada da cisnormatividade dentro do movimento. Como presidenta da ABGLT, quais os desafios você tem enfrentado para evitar e desconstruir centralidades dentro de uma organização representativa?
SYMMY LARRAT –
É muito difícil para a humanidade reconhecer privilégios. Requer uma movimentação muito grande — para todos nós. Eu mesma, de uns três anos para cá, me questionei se era de fato antirracista, e comecei a pilhar nisso. Foi um questionamento muito forte, de mim para mim. Mas era algo que eu tinha que buscar conhecimento, eu tinha que estudar sobre isso. Reconhecer privilégio é um movimento que tem que partir de nós, porque você tem de abrir mão de muita coisa.

O que a gente precisa entender: que o movimento LGBTQIA+ também faz parte disso [das incoerências da sociedade]. A gente não está atrás. Não é porque sou travesti que, automaticamente, sou desconstruída. E no caso da ABGLT, há muita gente que sai daqui questionando a própria entidade. Que bom! Não estou aqui criticando. Mas [antes] a gente tinha um modo de fazer que era reflexo da organização da sociedade: homens brancos [predominavam nos espaços de liderança]. E isso às vezes as pessoas deturpam, igual a gente faz com as fake news da vacina. Aqui também tem um monte de “GGGzinha” [para se referir a grupos majoritariamente compostos por gays, usa-se “GGG” em alusão à sigla LGBT]. E isso, às vezes, quando a gente fala, as pessoas distorcem. Respondem: “Ah, mas por que a gente não pode ter um grupo gay aqui?”. A gente tem que visibilizar o que está escondido. Vamos combinar que no movimento LGBTQIA+ a única coisa que não tem escondido são as bichas.

É difícil você conseguir desconstruir isso, principalmente num movimento que durante anos fez opções de ser um movimento mais coadunado com o liberalismo econômico do que com outras vertentes. E teve muita gente que ainda sobrevive disso, e quer se aproveitar disso. […] Mas nós nunca deveríamos usar uma pauta e a vida das pessoas, a existência das pessoas, para usufruto próprio somente. Eu acho que há duas dimensões no fazer político: a dimensão coletiva e a dimensão pessoal. Tem gente que se afunda no coletivo, e, quando vê, não tem vida; e tem gente que só usa o coletivo para usufruto próprio. Tem que haver uma dosagem.

DIADORIM – Então sua gestão é pautada pela coletividade?
LARRAT –
Eu sou defensora da coletividade desde quando comecei a militar. Eu fui de movimento de bairro, fui de movimento de igreja (é, eu fui da igreja, mas consegui me libertar disso), do centro acadêmico, executiva nacional — e se estivesse no sistema formal, teria sido de sindicato também. Eu não acredito que a individualidade vai vencer. Não acredito que vai chegar um messias, que Jesus vai voltar à terra e resolver toda a bagaça. Eu acho que se tem uma energia superior e um sagrado, ele deixou para a gente [se resolver]. Ou a gente aprende ou não vai dar. E, por acreditar na coletividade, eu aceitei disputar a presidência da ABGLT.

Eu acho que é muito legítimo que haja organizações específicas, saúdo a todas e quero ajudar a construir as que vierem. Mas eu acredito que ainda precisamos de um fórum maior que reúna toda nossa diversidade. Achava que era necessário e simbólico demais [estar na presidência da ABGLT]. E sabia que ia ser incômodo demais, porque o movimento GGG não quer abrir mão dos privilégios. […] Mas eu aceitei porque eu sabia que ia ser incômodo, que muitas pessoas iam jogar pedra, que os recursos iam sair, que pessoas iam se afastar para construir outro lugares para elas aparecerem e fazerem da forma delas.

Mas sabia também que a simbologia disso [de ter uma travesti na presidência da associação] ia trazer de volta parcerias importantes para a gente, como feministas que dialogam com a gente, movimento de educação, do campo, desencarceramento, antiproibicionismo. Essas são pautas que pra mim são muito mais agradáveis de lidar, porque mexem com a gente, nos tiram do lugar cômodo. Ter essa ruptura seria bom para todas nós.

DIADORIM – No ano passado, houve um aumento expressivo no número de vereadoras trans e travestis eleitas no Brasil. Que avaliação você fez dessas eleições num momento de tanto conservadorismo no país?
LARRAT –
Primeiro a gente não pode cair no equívoco de entender isso como um fenômeno que nasce do nada, que de repente elas brotaram. Não foi isso. Há duas coisas que são importantes, se a gente for avaliar o perfil das candidaturas. A maioria delas, sejam trans no campo feminino ou masculino, mas sobretudo do campo feminino, foram exatamente pessoas que investiram na coletividade.

Para pra pensar as [candidaturas] mais expressivas: a gente pega Erika Hilton (PSOL-SP), que é mulher, travesti negra da maior cidade do país, a mais votada e vem construindo uma relação de movimento, com movimento de mulheres negras, se aproximando da ABGLT e da Antra [Associação Nacional de Travestis e Transexuais]. Nós fizemos várias coisas juntas, ainda na época da Bancada Ativista [primeira candidatura coletiva eleita do Estado de São Paulo, pelo PSOL, em 2018; hoje se chama Mandata Coletiva], que ela integrava. Erika fez uma opção pela coletividade e por outras pautas — porque não dá pra a gente achar que só falando em gênero e sexualidade a gente vai dar conta do mundo. Por exemplo, quando chega uma pandemia como esta de Covid-19, se a gente não discutir o SUS [Sistema Único de Saúde], a gente fica de fora.

A vereadora Erika Hilton (PSOL), mulher mais votada na capital paulista nas eleições de 2020. Foto: Divulgação

DIADORIM — Olhando de uma forma mais ampla para o quadro de parlamentares LGBTIs, a gente tem nomes tanto na direita quanto na esquerda. Você considera um avanço, porque reflete uma pluralidade dentro do movimento, ou seria uma fissura, uma vez que as pautas sempre estiveram mais ligadas às esquerdas?
LARRAT – Acho que cada um tem o direito de ir para onde quiser, fazer o que quiser, com quem quiser, na hora que quiser, no lugar que quiser, mas em lugares seguros. Se eu sempre defendi isso, não posso ser contra nesse momento da minha trajetória.

Mas acho que isso é reflexo de uma organização nossa. Também há coletividades no movimento que optam por fazer uma capa de que estão conversando com um governo democrático e estão lá [dentro]. Tem pessoas LGBTQIA+ que, teve um golpe [se referindo ao impeachment da Dilma Rousseff, em 2016], e diziam: ‘Não, mas ainda é um governo democrático, não importa se está na direita, vou ficar aqui’. Eu saí louca, né? No outro dia eu saí. Aí depois chega um cara [Jair Bolsonaro (sem partido)] que… Aí a pessoa continua dizendo: ‘Não, mas a gente vai ficar aqui disputando’. Aí depois começa a mentir, dizendo que tem política [pública para população LGBTI+]. Aí a Damares [Alves, ministra da Família e dos Direitos Humanos] cumpre 0% do orçamento da pasta. Tá fazendo o que ali? Não estão pela coletividade, estão por benefício próprio.

Essa é a diferença que a gente tem que colocar. Há pessoas que nos representam, sobretudo do campo das mulheres trans e travestis, que optaram pela coletividade, e há esses outros que não são da coletividade, que usam a criatividade para benefício individual. E isso a gente vai ver em vários outros grupos: nos professores, nos médicos, em todas as classes. Porém, se nós, que estamos ocupando o lugar de maneira mais recente, para as outras classes e ver o que já aconteceu, é porque, meu amor…

Vejam o que aconteceu com os próprios governos progressistas: alimentaram o ovo da semente que veio nos picar. […] Para mim, o exemplo do golpe de 2016, não é somente para a gente ficar gritando ‘é golpe, é golpe!’; ele tem que servir para a gente entender o quanto ele mesmo alimentou os inimigos destruindo a democracia.

DIADORIM – Qual o posicionamento da ABGLT com relação aos pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro?
LARRAT –
A ABGLT fez um debate com as afiliadas, quando assinamos pela primeira vez um primeiro pedido de impeachment de Bolsonaro – que acho que foi o segundo ou terceiro entregue à Câmara. Assinamos junto com outros movimentos sociais. Foi unânime entre as afiliadas que participaram da votação [a decisão de apoiar o pedido de afastamento do presidente].

A ABGLT já assinou mais um pedido de impeachment. Por um simples motivo: não é porque a presidenta da entidade faz parte de uma agremiação partidária [Symmy Larrat é filiada ao PT] – a minha vida pessoal não é a minha vida da ABGLT. […] Mas é que a gente entende que primeiro há motivos técnicos e políticos para se pedir o impeachment.

Trata-se de uma pessoa que coloca em risco a vida das pessoas, estimula ações que fazem isso, ele ameaça questões democráticas deste país, toma decisões que são mais militaristas do que representa as relações democráticas e ignora a violência que sofremos… A gente não titubeia quanto a isso. A ABGLT é a chata do rolê, que a pessoa espirra, e a gente fala ‘Fora, Bolsonaro’.

A ABGLT, na verdade, quando Bolsonaro se elegeu, antes mesmo de ele assumir, entregou um documento à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, na OEA [Organização dos Estados Americanos], dizendo que estávamos preocupados porque a figura e perfil de quem assumiria a Presidência do Brasil poderia agravar violência e assassinatos contra a gente e a extrema vulnerabilidade em que vive essa população. A gente sinalizou a preocupação, comprovou, e agora a gente diz que não dá, basta.

DIADORIM – E como você acredita que os movimentos sociais devem se organizar para pressionar a saída de Bolsonaro?
LARRAT –
Por isso, o “Fora, Bolsonaro” não pode de jeito nenhum estar apartado da defesa da democracia. Por isso, integramos a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos, no Congresso Nacional. […] Por que a gente coloca “democracia” antes de “Direitos Humanos”? Porque o impeachment só vai acontecer quando todos os acordos forem rompidos. Porque esse blá-blá-blá de que está lutando contra corrupção é mentira. A gente voltou para um cenário ainda pior.

Eu, pessoalmente, defendo que a gente precisa ter um ‘Fora, Bolsonaro’, defendo o impeachment, defendo que a gente tem que ser inimiga desse governo, que a gente não deve ter diálogo com ele.

Para mim, o governo Bolsonaro é inimigo. A gente tem que destruir. É diferente do Estado de São Paulo, que tem um governador que a Symmy, pessoalmente, não votou nele, mas eu defenderia que ABGLT sentasse com [João] Dória (PSDB-SP) [para discutir políticas públicas]. Embora ele não vá chamar, porque sabe que vamos fazer duras críticas – mas vamos fazer duras críticas como sempre fizemos com todos os governos. Ser chapa branca não é uma acusação que a gente pode receber, em nenhum momento da história da ABGLT.

DIADORIM – O PT e o PSOL foram os partidos de esquerda com mais candidaturas LGBTI+, em 2020 (segundo dados da Aliança Nacional LGBTI). O que você considera pauta fundamental do movimento para as agendas dos possíveis presidenciáveis desses partidos?

LARRAT – Eu acho que todos cometem o mesmo erro. O PT foi o partido que mais investiu em campanhas LGBTQIA+ nas eleições do ano passado, seguido do PSOL. Os partidos estão começando a fazer um exercício. Mas isso está distante do que acho necessário. Não estou ignorando que esse exercício é positivo, sobretudo do PSOL, que ainda é mais contundente.

Sou uma pessoa muito esperançosa, sou pisciana, sonho que não tem mais para esse cara [Bolsonaro], mas não tenho ainda a crença de que vem outro governo progressista. Ainda não estou convencida disso. Obviamente isso não quer dizer que não vou fazer a minha militância, cotidianamente, para que venham governos progressistas. Mas acredito que quem quer se colocar como outra solução disso tem que entender que o ponto central da questão é o debate moral. E pra mim nenhuma agremiação partidária entende a narrativa de gênero e sexualidade como narrativas estruturantes de uma mudança social necessária.

É óbvio que a gente precisa debater saúde, educação, é óbvio que a gente tem que debater a venda de nossas riquezas. A gente quer ter uma escola para disputar – a gente não está na escola para disputar, não quero disputar uma coisa que quando a gente chegar não existe mais, que é a educação pública gratuita e de qualidade. Mas a narrativa para vencer é moral: ela foi moral no golpe, na ditadura; ela é moral.

Não é melhor a gente naturalizar esse debate? Dizer: ‘Olha, não é o fim do mundo, não são enviados do capeta. São pessoas que têm direito. Você não precisa concordar, mas enquanto política pública nós vamos fazer para todo mundo’. Não é melhor você enfrentar o debate? As pessoas não querem fazer o debate porque, no fundo, elas não estão convencidas dele.

Parada LGBT de São Paulo. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

DIADORIM — O que você acredita que serão as principais pautas do movimento LGBTI+ nesta nova década?
LARRAT –
No campo macro, a defesa da democracia, a defesa dos direitos humanos, o respeito e entendimento das identidades de gênero e sexualidades dissonantes das normativas. E acho que precisamos debater em diversos campos mais pautas, como nosso acesso aos serviços de educação, saúde, de uma maneira geral.

Mas no último momento, no momento em que estamos vivendo hoje, vejo que três fatores são emergentes na sociedade, e foram os mais discutidos nas eleições: a questão do abrigamento é um deles – algo que o movimento todo se identificou e disse: “Temos que nos abrigar. As pessoas são expulsas de casa, e precisam ser abrigadas”. Eu acho que esse é um tema que vem com muita força. Educação é outro tema. Aliás, a gente está começando a interseccionar a pauta de maneira mais nítida nas nossas práticas: educação está ligada ao emprego. Vamos querer disputar espaço na educação para empregabilidade.

É óbvio que defesa da democracia é algo que deve estar nas pautas de todo mundo, a gente vai defender e sempre pautar isso, mas o que emerge da população LGBTQIA + sem dúvida são esses três elementos.

DIADORIM – Recentemente, acompanhamos as notícias de mais um assassinato de uma trans, com requinte de crueldade, no Ceará – a morte de Keron Ravach, de 13 anos. E em agosto do ano passado, o estado já havia registrado 14 mortes de travestis e transexuais, segundo a Antra. Como a ABGLT tem acompanhado essa situação?
SYMMY –
Esse é um caso que também traz uma dualidade e a gente não disputa. A cabeça da pessoa que acha que “aquilo tem que ser exterminado”, é uma disputa que se dá em outro campo – e não tem política pública que sozinha vai resolver isso. Essa disputa tem que ser feita com nossa ocupação, as existências culturais, disputando narrativa, indo pras ruas, fazendo parada, indo para as escolas conversar.

No campo da política pública, nós temos que cobrar as arbitrações. E eu acho ótimo ter feito essa pergunta, porque a gente lançou no ano passado, com a All Out, uma campanha para cobrar a aplicação daquele protocolo [que orienta agentes públicos na forma de abordagem e nos procedimentos de registro de ocorrências e de casos de homotransfobia], que nós fizemos com a FGV [Fundação Getúlio Vargas], em parceria com outras entidades. A gente vai intensificar no próximo período essa cobrança. A gente já oficiou todos os estados, e vamos oficiar novamente sobre a necessidade de apuração e registro. Queremos fazer um ranking, mostrando os estados que responderam, se responderam corretamente e como as pessoas podem cobrar aos governadores.

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