Imagem: Tomaz Alencar/Diadorim
política

10 anos do ‘Kit Gay’: fake news que virou símbolo contra a população LGBTI+ brasileira

Pesquisador relembra projeto Escola sem Homofobia; censurada no governo Dilma Rousseff, cartilha virou arma de Jair Bolsonaro

O veto ao chamado “Kit Gay” fez 10 anos em 25 de maio. Um episódio tão importante em suas consequências, inclusive por impulsionar a carreira do atual presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), merece ser rememorado.

“Kit gay” foi o apelido dado à cartilha do projeto Escola sem Homofobia, um material educativo para professoras e professores composto por caderno de textos, panfletos e um DVD com três vídeos. Um dos produtos da parceria de ONGs com o Ministério da Educação, o material ainda não tinha sido finalizado quando foi apresentado em audiência pública no Congresso Nacional, em 23 de novembro de 2010. Uma semana depois, o então deputado Jair Bolsonaro foi à tribuna da Câmara anunciar o maior escândalo de que já teve conhecimento.

“Atenção, pais de alunos de 7, 8, 9 e 10 anos, da rede pública: no ano que vem, seus filhos vão receber na escola um kit intitulado Combate à Homofobia. Na verdade, é um estímulo ao homossexualismo, à promiscuidade” [sic], disse ele, à época. “Esse kit contém DVDs com duas historinhas. Seus filhos de 7 anos vão vê-las no ano que vem, caso não tomemos uma providência agora.”

O então deputado Jair Bolsonaro, na Câmara; ele usou livro falso para justificar sua oposição à cartilha

Foto: Antonio Augusto/Câmara dos Deputados

Sabendo que não seria chocante falar de um material didático destinado ao ensino médio, entregue a professores e não a alunos, Bolsonaro diminui a idade do público-alvo e coloca o “kit” nas mãos de crianças. A ideia dele era associar homossexualidade com pedofilia, classificando o combate à homofobia como uma forma de aliciamento de crianças. No “Programa do Ratinho”, em dezembro de 2010, afirmou: “É uma porta aberta para a pedofilia, a exibição desse vídeo nas escolas”.

Bolsonaro não foi o único parlamentar a se manifestar contra o “Kit Gay”, mas foi certamente o que ganhou maior exposição midiática com ele. A denúncia proporcionaria a ele diversas participações em programas de TV como o Ratinho, “Superpop” e “CQC”, do final de 2010 ao começo de 2011. O assunto cresceu com a ajuda da imprensa e de colegas do deputado no Congresso, como Anthony Garotinho, João Campos e Magno Malta. Deputados da bancada evangélica até se ressentiram de que Bolsonaro, que até então estivera associado à defesa do interesse dos militares, lhes tenha roubado o protagonismo na pauta anti-homossexual.

Em 25 de maio de 2011, a presidenta Dilma Rousseff (PT) escolheu vetar o “Kit Gay”. Falando à imprensa, disse que não seria permitido “a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”, e concluiu afirmando: “eu não concordo com o kit”. Essa censura pública deu a entender que os adversários do “Kit Gay” estavam, ao menos em parte, corretos. Além disso, Rousseff ordenou que futuros “materiais sobre costumes” tivessem que passar pelo crivo da Secretaria de Comunicação (Secom), ligada à Presidência — a determinação tirava a autonomia do Ministério da Educação no tocante à pauta LGBT. O material nunca foi distribuído.

Essa decisão tinha um contexto: o governo Dilma Rousseff sofrera sua primeira derrota na Câmara, com a aprovação do novo Código Florestal, e estava sob ameaça das bancadas evangélicas e católicas, que propunham convocar o ministro Antônio Palocci a depor, caso o kit não fosse descartado. Certamente a presidenta pensou que precisava negociar coisas “mais importantes”.

Para o movimento LGBT, o veto ao kit de combate à homofobia representaria o primeiro grande retrocesso, depois de um período de bom relacionamento com o governo federal, nas gestões de Lula (PT). Para a luta por direitos humanos em geral, seria um marco negativo, prenunciando a ascensão conservadora que viria.

Já Bolsonaro encontrou um filão que não ia abandonar nunca mais: posar como “defensor da família”. Ganhou projeção nacional que soube aproveitar muito bem, e passaria a falar sempre no “Kit Gay”, denunciando novos “kits” à medida que os anos passavam.

Por ironia do destino, as eleições de 2018 opuseram Jair Bolsonaro ao professor que foi Ministro de Educação durante a elaboração do Kit Escola sem Homofobia, Fernando Haddad (PT). Ótima ocasião para voltar mais uma vez à história. Em entrevista ao “Jornal Nacional”, Bolsonaro repetiu sua versão do “Kit Gay”, sacando um livro didático qualquer como suposta prova[5]. O clima criado pela campanha pode ser resumido pela notícia falsa sobre distribuição de “mamadeiras de piroca” em creches pelo PT.

A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) vetou o kit Escola sem Homofobia

Foto: Agência Brasil

Mais recentemente, em 2020, o pastor Marcelo Crivella (Republicanos), desesperado com a possibilidade de não se reeleger prefeito do Rio, afirmaria que o candidato Eduardo Paes daria a secretaria de Educação ao PSOL, com a finalidade de promover a pedofilia nas escolas. A mesma acusação se repetiria, ao longo dos anos e com diversos alvos.

Visto a distância, o veto ao “Kit Gay” foi um erro tático que mostrou a importância do combate à homofobia. Ceder a chantagens nessa questão não traz os resultados esperados e fortalece os inimigos da democracia. No entanto, não se pode dizer que a esquerda brasileira tenha aprendido a lição. A luta LGBT continua sendo vista por muitos como assunto menor, distante dos “verdadeiros” temas nacionais, ou mesmo como um identitarismo exótico, que só faz dividir. Observar o sucesso de figuras como Bolsonaro mostra a importância de pensar formas para integrar o combate às opressões ao centro da agenda política progressista.

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Jorge Luiz

É formado em Artes e atualmente pesquisa exposições censuradas e as guerras culturais no Brasil.

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