O escritor João Silvério Trevisan durante a Parada LGBT de São Paulo, na avenida Paulista. Foto: Reprodução/Facebook
cultura

‘Chega de gente falando em nosso nome e se apossando da nossa voz’, diz João Silvério Trevisan

Autor de “Devassos no Paraíso” integrou o Lampião da Esquina, marco da imprensa “guêi” do país

Desde o início do pandemia de Covid-19, no Brasil, em março do ano passado, o escritor João Silvério Trevisan vive seu isolamento dedicado à atualização e revisão do livro “Seis Balas num Buraco Só”, publicado pela primeira vez em 1998. Na nova edição da obra, que será lançada em julho pela Editora Objetiva, ele amplia a análise feita há duas décadas sobre as masculinidades brasileiras, agora, diz, com “todos os fatores relacionados ao masculino tóxico” protegidos pelo “projeto político revanchista do governo de Jair Bolsonaro”.

Segundo o escritor, sua nova pesquisa escancara o aumento significativo da violência contra a mulher, no país, resultado do “espetáculo de um macho dominante desvairado”, de homens “imbuídos de violência fálica”.

João Silvério Trevisan faz parte do grupo pioneiro do movimento LGBTI+ nacional, com importantes contribuições políticas e intelectuais. Autor de “Devassos no Paraíso” – apanhado histórico da homossexualidade no Brasil – ele também integrou integrou a equipe editorial do jornal Lampião da Esquina, um dos marcos da imprensa gay no país. “Nós sobrevivemos graças à miraculosidade do desejo que nos impactava e movia nossa esperança”, lembra.

Nesta entrevista à Diadorim, feita por e-mail, Trevisan fala sobre a atuação da mídia alternativa, na virada década de 1970 para 1980, como impulso de resistência contra a homofobia e o espaço que LGBTIs passaram a ocupar na imprensa atual. “Nós, dissidentes sexuais, ocupamos o lugar que nos era devido nas ruas. Assim surgiu uma Linn da Quebrada, entre muitas outras figuras marcantes em diferentes áreas, das artes à política”, afirma o escritor. “E não adianta governos reacionários se interporem: nós já descobrimos o caminho das pedras. A escuridão em que pretendem nos mergulhar é o combustível mesmo para afirmação do nosso desejo-vagalume, que foi feito para brilhar.”

Presente na formação do Somos – um dos primeiros grupos do movimento homossexual de São Paulo, criado em 1978, e do qual saiu por discordar da interferência de partidos políticos – Trevisan também comenta a contemporaneidade do movimento LGBTI+, sobretudo a representatividade de transexuais na política.

DIADORIM – O Lampião da Esquina, que circulou de 1978 a 1981, foi uma resposta – e uma tentativa de desconstrução – ao discurso preconceituoso da imprensa brasileira contra gays, lésbicas e travestis. O que mudou na forma como a mídia aborda a diversidade sexual, hoje, no país?
JOÃO SILVÉRIO TREVISAN –
Na verdade, o preconceito não acontecia apenas com a imprensa, nem se concentrava num setor determinado. A sociedade respirava e praticava homofobia, como parte da própria cultura eivada de machismo e heterossexismo. O que se fazia contra a comunidade LGBT+, naqueles anos, era um massacre quotidiano, da direita à esquerda, indistintamente. Uns condenavam em nome da moral consagrada, outros condenavam em nome da revolução prometida. Não se colocava em discussão a possibilidade de reivindicarmos direitos. Não havia direitos para desviantes da “ordem natural das coisas”. A diferença dentro do espectro político estava na intensidade do preconceito homofóbico. Era considerado tão natural condenar o “desvio sexual” que a própria homofobia internalizada se tornava onipresente. Não bastasse a repressão externa, uma das maiores dores dessa população sexualmente dissidente concentrava-se na culpa de ser. Nós sobrevivemos graças à miraculosidade do desejo que nos impactava e movia nossa esperança. Em suma, assim se vivia naqueles tempos. Para fazer a comparação proposta por sua pergunta, basta pensar no que nos tornamos hoje, nós dissidentes sexuais. Arrisco dizer que o desejo nos imantou e impulsionou nossa resistência, de modo que a consciência política da comunidade LGBT+ é hoje incomparavelmente maior do que no passado. Isso dito, não se trata apenas de perguntar como, no Brasil de hoje, a mídia mudou em relação à diversidade sexual. É preciso virar o jogo e mesmo o foco da questão. Seria mais adequado verificar como nós, dissidentes sexuais, tomamos a mídia. E quando falo em “tomar a mídia” não me refiro a uma tomada de poder, mas a uma tomada de consciência que nós provocamos na mídia através de inúmeros canais de resistência. Como exemplo, basta pensar nas dissidências das periferias das grandes cidades. Aquilo que ativistas pelos direitos homossexuais jamais conseguimos fazer no passado, por nos concentrarmos numa bolha de classe média, hoje está visível em qualquer parada LGBT de cidades brasileiras grandes, médias ou pequenas: nós, dissidentes sexuais, ocupamos o lugar que nos era devido nas ruas. Assim surgiu uma Linn da Quebrada, entre muitas outras figuras marcantes em diferentes áreas, das artes à política. Em comparação àqueles anos do Lampião, aí me parece estar a diferença que leva a um processo contínuo de desdobramentos. E não adianta governos reacionários se interporem: nós já descobrimos o caminho das pedras. A escuridão em que pretendem nos mergulhar é o combustível mesmo para afirmação do nosso desejo-vagalume, que foi feito para brilhar.

Equipe do Lampião conversa com Ney Matogrosso (esq.), em cena do documentário de Lívia Perez. Foto: Reprodução/Youtube

DIADORIM – Quais os desafios editoriais para a imprensa LGBTI+ brasileira?
TREVISAN –
Acho que de um ponto de vista que junte reflexão e atuação, há dois desafios prioritários: um voltado para dentro da comunidade LGBT+, outro para toda a sociedade brasileira. O desafio interno está relacionado justamente à natureza das políticas identitárias que nos concernem. As letrinhas propõem uma questão em aberto: quem somos nós? Mas não conseguem responder de maneira suficiente a essa pergunta. O acúmulo de letrinhas levou a um polo oposto às identificações pretendidas. São tantas letras, que essa suposta comunidade se tornou um enigma para si mesma e, de quebra, para toda a sociedade com quem queremos nos comunicar. Receio que, para qualquer pessoa leiga, as letrinhas parecem uma marca de fantasia que tem um sentido vago e quase esotérico. Confesso que eu próprio às vezes tenho que parar para compreender o sentido preciso de cada letrinha – mesmo porque agora já aparecem subdivisões mínimas. Receio que, a continuar esse movimento, vamos criar compartimentos novos para um armário sem fim. Estaremos voltando para o armário, quando pensávamos estar abrindo portas? O aspecto relacionado à sociedade brasileira tem a ver com isso e talvez deva responder à questão: o que queremos nós? Essa resposta é impossível se nos fecharmos numa bolha. A comunidade LGBT+ tem história suficiente para reivindicar, mais do que nunca, sua presença e ação como parte da sociedade brasileira. Trata-se de uma constatação banal: estamos em todo canto, fazemos parte das mais diversas profissões, influenciamos não poucos nichos sociais. Portanto, não faz sentido continuarmos falando apenas da e para a comunidade LGBT+. Para isso, dou meu caso como exemplo. Há anos venho refletindo comigo mesmo e debatendo em público a natureza do meu pertencimento: não quero e nunca vou me contentar em ser apenas um “escritor para viados”, tal como a mídia tende a fazer. Meu papel, enquanto escritor e homossexual, é dialogar com meu tempo e com meu país, é responder aos desafios que me foram colocados justamente por causa do lugar em que o preconceito social me colocou, ou seja, à margem. Não há motivo para duvidar disso, pois minha história é parte da história deste país e dele nunca esteve separada. Por outro lado, minha homossexualidade me oferece indiscutivelmente um ponto de vista específico e privilegiado sobre minha sociedade. Um livro como “Devassos no Paraíso” não foi escrito apenas para que LGBTs conhecessem sua história, ainda que seja um escopo fundamental, é claro. Esse livro foi gerado e publicado para que a história deste país ficasse um pouco mais completa, no sentido de que pretendi revelar os meandros de uma comunidade inteira cuja história tem sido sistematicamente desconsiderada, quando não apagada. Portanto, minha luta tem sido para que me reconheçam como um homossexual falando para todo o país. Se alguém quer aprofundar seu conhecimento sobre a sociedade brasileira, “Devassos no Paraíso” pode ajudar, independentemente de gênero, orientação sexual, identidade de gênero, etnia ou classe. Quero ser levado em consideração sem meios termos. Basta de segregacionismo que simplesmente aprofunda uma homofobia sistêmica. Basta de colocarem LGBTs num lugar de gueto.

DIADORIM – Além de pautas culturais e comportamentais, o Lampião denunciava violações dos direitos humanos e discutia política. O senhor acha que esses dois últimos temas têm sido devidamente abordados pela imprensa LGBTI+ no país?
TREVISAN –
Acho que de certo modo a imprensa LGBT+ tende a se concentrar nesse mesmo gesto de falar exclusivamente para a bolha. Nesse sentido, estamos inadvertidamente fazendo o jogo da sociedade heteronormativa, quando nos concentramos naquele lugar que nos foi por ela determinado como sendo nosso gueto. Nos tempos do grupo Somos e do jornal Lampião, a gente propunha que a solidariedade fosse um resultado natural do crescimento da consciência política e levasse os diferentes grupos sociais discriminados a compreenderem suas questões particulares como questões que pertenciam a todos os excluídos. Daí porque nos parecia fundamental agregar a luta LGBT aos movimentos feminista, antirracista, ambiental etc. Sei que é um projeto politicamente difícil, mas não vamos conseguir avanços dentro da comunidade se nos isolarmos. Cada grupo discriminado aprende melhor sobre a discriminação que sofre se buscar se solidarizar com a discriminação de outros setores sociais. Com isso, não quero propor um velho cacoete histórico de certa esquerda: levar o ativismo a se diluir dentro de partidos políticos considerados nossos navios rebocadores e nossos faróis. Absolutamente não. Chega de gente falando em nosso nome e se apossando da nossa voz. Só haverá verdadeira conquista de direitos se começarmos por conquistar a nossa voz. Aliados, sim. Senhores, nunca mais. Seja qual for a sua cor política.

O jornal Lampião da Esquina circulou de 1978 a 1981, no Brasil. Foto: Reprodução

DIADORIM – Qual tem sido o papel da internet na diversificação da cultura LGBTI+ no Brasil?
TREVISAN –
Tem sido fundamental. Acho que a internet é um espaço a ser conquistado mais e mais para os grupos discriminados se manifestarem, se comunicarem, debaterem, refletirem. A direita abocanhou uma parte da internet, mas nada tem a ver com conquistas de direitos. Ao contrário, trata-se de usurpar e destruir com base em fake news e manipulação em massa. Nós, vítimas da discriminação, temos a internet como instrumento criativo para crescimento da nossa consciência política.

DIADORIM – Os estudos de gênero e sexualidade têm forte influência das teorias norte-americanas. Acha que essa “americanização” interfere na forma de olharmos para nós mesmos, brasileiros?
TREVISAN –
Penso que um diálogo com as ciências de outros países é fundamental, pois o Brasil não fica em Marte. Mas sem dúvida muita coisa que se vem chamando de “decolonização” pode disfarçar um novo tipo de colonização se simplesmente papagaiarmos as modas universitárias dos países de extração intelectual majoritária, só porque parecem bacanas e dão prestígio acadêmico. Antigamente, isso tinha um nome: neocolonialismo. Como desconfio de todo tipo de modismo, prefiro simplesmente descolonizar, sem necessidade de “copia e cola”.

Trevisan, nos anos 1980. Foto: Reprodução/Blogay

DIADORIM – O senhor diz que o “aparelhamento” político de esquerda dentro do Somos foi uma das razões do seu rompimento com o grupo. O senhor ainda considera essa relação problemática, hoje em dia?
TREVISAN –
Já escrevi e falei muitíssimo sobre esse perversidade política que acometeu o Somos e cooptou boa parte do movimento LGBT+ no passado, criando interferências e atrasos nas nossas conquistas (quem quiser saber melhor, minha versão está lá, em “Devassos no Paraíso”, por exemplo). Mas acho que essa denúncia que venho fazendo insistentemente durante anos sobre interferências partidárias nos movimentos sociais talvez tenha surtido algum efeito. O certo é que o ativismo LGBT+ ficou bem mais esperto. Mesmo porque as lideranças que antes conduziam o movimento como pequenos messias agora tendem a se diluir cada vez mais diante da autonomia da nossa voz, conquistada a duras penas. Ainda é preciso equacionar melhor a relação da comunidade com os partidos políticos, mas o crescente número de representantes LGBT+ nos vários níveis parlamentares tem mostrado a força da nossa voz. Politicamente, a comunidade LGBT+ amadureceu muitíssimo em relação a essa dependência partidária.

DIADORIM – A relação político-ideológica que esteve presente no movimento LGBTI+ nos anos 1980 interferiu no combate à Aids?
TREVISAN –
Não fosse a atuação de representantes da comunidade LGBT+ não teríamos conseguido, a duras penas, montar um programa de luta contra a Aids que se tornou referência em todo o mundo. Isso se considerarmos que no período dessa pandemia ainda tivemos que superar o desmonte ocorrido graças às lutas intestinas provocadas pelas interferências partidárias no interior do ativismo LGBT+.

DIADORIM – Mais de duas dezenas de LGBTIs foram eleitos em 2020 para cargos no legislativo, apesar da força do discurso conservador no Brasil. Essas eleições são um avanço efetivo? A representatividade é suficiente?
TREVISAN –
Sim, há um avanço. Sim, ele é insuficiente. Mas a partir das eleições do ano passado acho que ficou clara uma questão. As forças regressivas que pretendem reverter nossas conquistas estão se deparando com resistência consistente. Esse é um dos efeitos da direita no poder: ela própria nos leva a encontrar novas formas de resistência. Preencher cargos no legislativo é uma delas, mas não a única. Transexuais estão arrebentando a boca do trombone, preenchendo espaços inimagináveis, dos esportes à universidade e ao judiciário. É um claro sinal de como estamos nos articulando para fortalecer nossa capacidade de resistir.

DIADORIM – O senhor está reeditando “Seis Balas num Buraco Só”, que trata da crise das masculinidades. Como tem revisto a obra, 20 anos depois da primeira edição?
TREVISAN –
Desde aquela primeira edição de 1998, vejo uma quantidade enorme de temas que continuam fazendo sentido e se tornaram ainda mais urgentes em relação à crise do gênero masculino. Nas pesquisas para a nova edição tem sido doloroso constatar o aumento significativo de violência contra a mulher e o feminicídio, em particular. Não há como não ficar horrorizado diante da multiplicação e crueldade crescente dos casos perpetrados por homens imbuídos de violência fálica, apesar das tentativas de resistência em várias frentes. A crise do masculino chegou a um ponto insustentável, pois o que vemos é o espetáculo de um macho dominante desvairado, ao se sentir acuado. Ainda mais assustador é constatar como todos os fatores relacionados ao masculino tóxico se acoitaram no projeto político revanchista do governo de Jair Bolsonaro [sem partido]. Com ele, o masculino tóxico tomou o poder em Brasília, sem receio de usar a barbárie como forma de se impor – o que fica claro já no seu culto bélico-armamentista. A nova edição vai abordar a questão política atual e suas raízes no ideário falocêntrico de Donald Trump, mas não vai se deter aí. Se não é nada agradável meter a mão nesse vespeiro do masculino hegemônico, é obrigatório analisar a fúria com que ele reage à sua perda de espaço. Não vejo outra alternativa senão escancarar o problema. A nova edição de “Seis Balas num Buraco Só” vai falar também das novas perspectivas abertas pela crescente consciência de como é fundamental combater o machismo e seus desdobramentos. Não é fácil enfrentar o rebote bárbaro que estamos vivendo, mas por outro lado é indiscutível que historicamente não temos outra escolha senão desmontar a bomba da hegemonia falocrática e ativar a guinada em direção a um masculino menos doentio, mais integrado e consciente de suas fragilidades, algo que ele não gosta de admitir. O mito da virilidade ideal que o patriarcado fabricou durante séculos já deu frutos mais do que podres e precisa ser desconstruído com insistência.

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