Arte: Tomaz Alencar/Diadorim
justiça

De que nos serve a criminologia queer no Brasil?

Pesquisadora defende pensamento queer na criminologia para desestabilizar hegemonias

Por muito tempo se perguntou se a criminologia traria algo de importante aos feminismos. Mais: se os saberes feministas teriam chances de mudar os rumos da produção científica criminológica. Com estas problematizações em mente, as criminologias feministas foram produzidas, desenvolvidas e seguem avançando em intenso debate e embate com um “(cis)tema” heteronormativo, andrógeno e sexista, produzindo ciência que aproxima sujeito e objeto, desestabiliza métodos tradicionais e questiona a quem serve o fazer científico moderno.

E ao pensamento queer, quais contribuições pode a criminologia trazer? Ou melhor, como podemos interrogar a criminologia a partir da teoria queer?

Manobra ousada esta, de juntar o Judiciário e a população LGBTI+. Polícia e juiz não combinam com travesti, viado e puta.

A relação entre sistema de justiça criminal e a população LGBTI+ foi construída com base em conflitos e criminalizações, manejando corpos abjetos e sexualidades dissidentes ora com cadeia ora com “hospício”.

Estado e Religião encamparam a luta contra o sodomita. A díade pecado-crime de sodomia (pecado nefando) garantia o castigo infernal aos que se relacionavam sexual e afetivamente com pessoas do mesmo sexo, criminalizada até o Código Criminal de 1830. A sua retirada do campo criminal implicou o início da atuação de outro mecanismo de poder-saber, o médico-científico, posto que a descriminalização não significou aceitação ou tolerância. Afastou-se a ideia de pecado-delito e iniciou-se o tempo do desvio patológico, a que se convencionou chamar “homossexualismo”.

A aproximação entre as ciências médicas e o Direito naturalizava o tratamento do homossexual como sujeito anormal, e o sistema de justiça criminal era acionado sempre que necessária a gestão de corpos e impedimento das presenças indesejáveis no espaço público. Utilizam-se as contravenções penais de vadiagem e atentado violento ao pudor, sobretudo quando consideradas as demais categorias interseccionais que atravessam essa população, como classe e raça.

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O modelo positivista do século 19 via nos criminosos abjeções, cujos valores morais eram opostos ao da cultura e do progresso. Seus métodos, direcionados aos anormais, assemelha-se às técnicas das ciências médicas, como a psiquiatria, que cuida das dissidências sexuais, dos “invertidos”.

A compreensão do criminoso e do “invertido”, neste período, petrificava suas identidades e as essencializava, colocando o crime e a (homo)sexualidade como algo inato, inerente, que os deveria acompanhar para sempre. Não à toa, no início do século 20, a Teoria do Etiquetamento Social e, posteriormente, as Criminologias Críticas chacoalharam essa compreensão e apontaram que o crime não representa uma propriedade, uma essência, de uma minoria, mas a consequência de um processo de seleção de condutas. Vale dizer que não existe “a” condição de criminoso, latente, aguardando um fato detonador para aflorar. O que existem são processos de criminalização que se iniciam com as agências policiais e vão até a execução penal.

Há um giro importante na Criminologia quando ela começa a desestabilizar a identidade do criminoso e passa a olhar para os processos que constroem essa criminalização e problematiza todo o cenário a partir de fenômenos sociais e econômicos.

Todavia, esta peça é encenada por homens cis heterossexuais e brancos, ignorando-se (ou seria escondendo?) mulheres e população LGBTI+. As feministas, já se consolidando enquanto ativistas e acadêmicas, passam a denunciar esse apagamento estratégico e o sexismo do sistema de justiça criminal.

Por outro lado, o ativismo LGBTI+, desde a década de 1990, passou a questionar a maneira pela qual tal sistema criminal lida com a sexualidade. Mas apenas a partir dos anos 2000 (com maior intensidade após 2010), esta preocupação começou a ocupar grupos de trabalho de seminários, capítulos de livros, publicações em revistas internacionais e debates acadêmicos em geral.

Afinal, de quê nos serve a Criminologia Queer?

A teoria queer, originada nos Estados Unidos, representa uma nova maneira de pensar poder, cultura, sociedade, conhecimento, ciência e instituições. Procura expor as limitações dos binarismos, da cis-heteronormatividade, apostando na diferença para subversão dos discursos totalizantes e totalizadores que esmagam dissidências.

Por se pretender um termo necessariamente desconfortante e incômodo, e categoria de resistência, devemos nos afastar da adoção cega de achados teóricos produzidos no norte global. A ideia se centra no tensionamento de modo a desestruturar nossas categorias e instituições, produzindo nossa própria teoria, criando linguagem para tanto, se necessário.

Assim, de mãos (gru)dadas com Alexandre Nogueira Martins, utilizo o termo Teoria Transviada, mas poderia chamar Teoria Travesti, com Victor Siqueira Serra, ou mesmo Teoria Cu, com Larissa Pelúcio. E, por isso, a pergunta: De que nos serve uma Criminologia Transviada?

A Criminologia Transviada não é apenas sobre colocar a população LGBTI+ como personagem nas peças teatrais montadas e dirigidas por homens cis-heterossexuais. Ou seja, não nos serve, apenas, a disputa pelo objeto da Criminologia. Embora seja relevante o estudo sobre a população LGBTI+ como vítima e autora de delitos. Mas limitar a Criminologia Transviada a tal desiderato seria enterrar toda sua veia revolucionária possível.

A Criminologia Transviada tampouco serve ao questionamento daquilo que foi definido como “normal”, mas sim à interpelação de todo o processo de normalização. A desestabilização e desestruturação das hegemonias, responsáveis amplamente pelo massacre das dissidências sexuais e de gênero na construção da Criminologia, representa o ponto fundamental da Criminologia Transviada.

Ela é, como Lélia Gonzalez, nascida na “Améfrica Ladina”, e, portanto, tem sangue de combate, apresentando embates que enfrentam uma série de opressões interseccionadas. Politiza o desejo, encara a crueldade das manobras neoliberais e se reveste de uma pele local, sentindo os problemas da violência policial, dos estupros corretivos de mulheres cis lésbicas e bissexuais, da morte de travestis e mulheres trans, e reage a eles, produz sobre eles, pesquisa. Trata-se de uma Criminologia viva, pulsante.

Com Victor Siqueira Serra, pesquisam-se os discursos do TJSP sobre travestis; com Natálisa Macedo Sanzovo, questiona-se qual o lugar das trans na prisão; Natália Padovani e Simone Brandão politizam o afeto entre mulheres em prisão; Alexandre Martins questiona a criminalização da LGBTIfobia sob as lentes do giro punitivo neoliberal, apresentando o conceito do abolicionismo queer.

Assim, o pensamento Transviado na Criminologia é anticolonial, antirracista, antissexista, desestabilizando as próprias categorias que o compõem e indagando os próprios processos a que deu causa, de modo a estar sempre se construindo, aberto, sentindo a cidade e reagindo a ela, de modo a se manter sempre na seara de luta política.

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Alice Quintela Lopes Oliveira

Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Mestra em Direito Público pela UFAL. Funcionária Pública Federal.

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