O antropólogo Luiz Mott. Foto: Reprodução
política

‘Governo e igreja têm mãos sujas de sangue LGBT’, diz fundador do Grupo Gay da Bahia

Luiz Mott é presidente de uma das ONGs LGBTI+ mais antigas do Brasil

A estreita proximidade entre Estado e religião é um dos principais empecilhos para avanços de políticas públicas em defesa da segurança da população LGBTI+, no Brasil, segundo o antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB).

A ONG com sede em Salvador é referência para estudos e análises de índices de homotransfobia no país, porque realiza há quatro décadas o mais antigo levantamento de dados sobre violência contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis. Com a ausência de números concretos divulgados pelas secretarias estaduais de Segurança, o GGB contabiliza agressões, assassinatos e suicídios com base em notícias na imprensa e notificações de grupos da sociedade civil.

Segundo Mott, o “apagão” de dados está ligado à LGBTIfobia institucional das polícias brasileiras e “à má vontade” dos governos federais – que “além de não divulgarem pesquisas e números estáticos sobre essas mortes, negam as características de ódio de tais ocorrências”, afirma.

Em entrevista à Diadorim, o antropólogo comenta as dificuldades enfrentadas no levantamento feito pelo GGB e aponta os desafios para um efetivo enfrentamento à violência contra LGBTI+, sobretudo diante do governo de Jair Bolsonaro, a quem se refere como “o presidente e o político brasileiro que mais pregou o ódio anti-homossexual”.

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DIADORIM – Como começou a coleta de dados do GGB sobre violência contra a população LGBTI+? Quais os tipos de violência que vocês acompanham nesse levantamento?
LUIZ MOTT –
Quando eu fundei o GGB, em 1980, notei a necessidade de registrar os casos mais graves de violência contra a população LGBT, e os assassinatos são a forma mais violenta de homofobia e transfobia. São documentos no dia a dia. A partir daí, numa época em que ainda não existia internet, fax e xerox eram muito raros e caros, a nossa fonte de informação eram os jornais – que coletávamos aqui nas bibliotecas de Salvador – e recortes enviados pelos nossos correspondentes pelo Brasil afora, através dos Correios. Era tudo muito rústico, muito incompleto. Mas, ano a ano, começamos a coletar e divulgar esses dados, e o que a gente notou é que, à medida que os meios de comunicação se modernizaram, nossos números aumentaram também. Não só por conta da modernização, mas também porque a violência mortal, letal, contra a população LGBT também aumentava. Nos anos de [governo do presidente] Fernando Henrique Cardoso, mantiveram-se, em média, 100, 150 LGBTs [mortos] por ano; com Lula, aumentou para 200, 300; com Dilma e Temer, chegou a 400; e, surpreendentemente, na Era Bolsonaro, diminuiu um pouco. Em 2019, foram 329 [mortes]. E em 2020, até o mês de outubro, já eram aproximadamente 250 casos.

DIADORIM – E por que você acha que houve essa diminuição dos números, no governo Bolsonaro?
MOTT –
Não foi por causa da sua política pública de proteção à cidadania LGBT, pelo contrário. Depois de Dilma, que proibiu o kit anti-homofobia, que falou mal da homossexualidade, Bolsonaro é, indubitavelmente, o presidente e o político brasileiro que mais pregou o ódio anti-homossexual. Ele e os filhos. A ponto de dizer “prefiro um filho morto do que homossexual”. E há 10 anos o GGB contesta o Bolsonaro, tanto que já deu a ele o Troféu Pau de Sebo (todos os anos, ao divulgar o Oscar Gay, nós damos aos amigos o Troféu Triângulo Rosa e aos inimigos o Troféu Pau de Sebo). Por que diminuiu a mortalidade [de LGBTIs] no governo Bolsonaro? Porque em vista de tantas ameaças e xingamentos do presidente e seus filhos contra LGBT, gays e travestis passaram a ter mais medo, um pouco mais de receio e cuidado de não se expor. Não voltaram ao armário, mas deixaram de ser tão frenéticos quanto antes. Houve uma redução da criminalidade em geral. Quer dizer, num estado semi-policialesco, com tantos militares tomando cargos no governo, se criou um temor público e uma maior cautela. Igual ao caso da Aids: muitas pessoas travestis e gays, com medo de um vírus mortal e incurável, passaram a fazer sexo seguro, passaram a se cuidar mais. E no caso de gays e travestis, no governo Bolsonaro, passaram a tomar medidas de maior segurança.

DIADORIM – Quais são as principais dificuldades que vocês têm para fazer esse levantamento de dados?
LUIZ MOTT –
As dificuldades para a coleta e divulgação de dados sobre homicídios e suicídios de LGBT no Brasil se devem ao fato de que é feito praticamente há 40 anos por uma ONG, de utilidade pública municipal e estadual da Bahia — estatísticas de ódio que, nos Estados Unidos, por exemplo, são feitas pela CIA, pelo FBI, e que aqui deviam ser feitas pelo governo. Durante dois anos – se não me engano, entre 2012 e 2013 —, a Secretaria de Direitos Humanos fez esse levantamento, mas desistiu logo em seguida. Primeiro porque coletaram menos dados do que os apresentados pelo GGB; segundo porque se deram conta de que é um trabalho muito árduo, sujeito a muitas críticas das famílias que negam que seus filhos ou seus parentes eram homossexuais e foram mortos por causa da homofobia; terceiro porque recebem críticas também do próprio movimento, que considera, por exemplo, que nem todas as mortes são por homofobia; e porque são questionados pela polícia, pela delegacia, que diz que os crimes não são homofóbicos.

DIADORIM – O GBB criou uma metodologia própria, que chamam de “criminalística anti-LGBT”. O que isso significa?
LUIZ MOTT –
Através do livro Manual de Coleta, Informação e Divulgação de Crimes Homofóbicos, nós estabelecemos uma metodologia que inclui nessas estatísticas de crimes de ódio, como é o caso de travestis assassinadas na pista, como profissionais do sexo. Porque elas estão nessa situação de marginalidade por conta da transfobia, porque sofreram bullying em casa, na escola, não arranjam emprego, etc. Praticamente todos os latrocínios contra travestis, gays e lésbicas são incluídos como crimes de ódios porque o ladrão, o assassino, quando percebe (ou que já sabia antes) que a vítima é gay ou travesti, sabe que são pessoas mais fragilizadas socialmente, que os vizinhos não vão socorrer no caso de eles gritarem pedindo socorro, etc. De modo que o questionamento da inclusão desses casos de latrocínio ou de homicídios cometidos na pista contra travestis profissionais do sexo são sociologicamente e criminalisticamente perfeitos, como caracterização criminológica, embora os delegados e juízes, e às vezes até alguns militantes do movimento LGBT questionem. Mas nós estamos com a razão.

DIADORIM – O que apontam os relatórios do GGB?
LUIZ MOTT –
Todos os anos matam-se, em termos totais, absolutos, aproximadamente 60% de gays, 35% de travestis e transexuais e 5% de lésbicas. E esses dados incluem, ainda, curiosamente, heterossexuais – daí, nos últimos anos, termos falado de mortes violentas (homicídios e suicídios) de LGBT+. Esse “+” é para incluir heterossexuais que perderam a vida ao defender travestis. Como aconteceu com um camelô no metrô de São Paulo, que foi defender uma travesti perseguida por uns transfóbicos e acabou sendo assassinado, ou casos que se repetem de dois homens estarem juntos, um pai e filho, por exemplo, abraçados ou dois irmãos dançando num forró e serem confundidos com gays e um deles ser assassinado. O pai e o filho foram espancados, não chegaram à morte. Então algumas tendências se repetem ano a ano. Agora em termos absolutos, as travestis e as transexuais são as mais vulneráveis. Porque, segundo estimativas do GGB, baseadas no relatório Kinsey, no Brasil devem existir cerca de 10% de gays, ou seja 20 milhões, 6% de lésbicas, 12 milhões, e aproximadamente um milhão de travestis e transexuais, incluindo homens trans, que, embora em menor escala também são vítimas dos crimes (todos os anos, há cinco ou seis homens trans espancados).

DIADORIM – Quais são as principais características dos crimes cometidos?
LUIZ MOTT –
Predominam assassinatos com faca, espancamento, pedrada, paulada e arma de fogo. Outra tendência é que travestis são assassinadas nas ruas, em praças, nas estradas e lugares públicos, geralmente com arma de fogo. Muitas vezes algum desafeto passa de moto ou a pessoa que está no carona mata a tiros a travesti na rua, enquanto gays e lésbicas são mortos dentro de casa, de seus apartamentos, com objetos domésticos ou são sufocados com almofadas.

DIADORIM – A maioria dos estados apresentou dados divergentes no anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, se comparamos com o relatório do GGB. O estado de Santa Catarina, por exemplo, informou que não houve nenhuma morte de pessoas LGBTI+ durante o ano de 2019. No relatório anual de vocês, entretanto, aparecem seis óbitos dessa população. Qual é o principal motivo dessa divergência? A falta de critérios objetivos na apuração desses números não compromete os dados?
LUIZ MOTT –
Não é que nós inventamos. Nós somos mais rigorosos, no sentido de termos contato com as bases… Às vezes, mortes não são noticiadas na imprensa e nós sabemos através de redes pessoais, através, agora, da internet, que nos enviam essas informações corretas. E também há o fato de que os critérios, a “peneira”, das delegacias são homofóbicos. Criam-se dificuldades para o registro de denúncia quando LGBTs são vítimas de violência não mortal ou não querem registrar ou querem registrar apenas como agressão. Igual ao que acontece no racismo, que não querem registrar como racismo, mas como injúria racial. Isso faz parte do que nós chamamos de homotransfobia estrutural. E que se reflete na esfera governamental. Essas contradições se devem a esses critérios e à má vontade mesmo por parte do governo, sobretudo desse atual, em mostrar que o governo, assim como a igreja, as principais instituições, têm as mãos sujas de sangue LGBT. Porque além de não divulgarem pesquisas e números estáticos sobre essas mortes, negam as características de ódio de tais ocorrências.

DIADORIM – Essa “homofobia governamental” impede, por exemplo, a inclusão do registro da orientação sexual e identidade de gênero das vítimas nos boletins de ocorrência? Como isso interfere no panorama concreto da violência contra LGBTI+?
LUIZ MOTT –
Foi uma conquista do movimento LGBT, nessas últimas décadas, primeiro ter capacitado, em diversos estados (BA, MG, RJ, PR), policiais militares e civis em relação aos direitos humanos da população LGBT. Fizemos vários cursos para agentes públicos ensinando a diferença entre gay e travesti, como deve ser chamado um gay ou uma travesti, o tipo de abordagem, o tipo de problemas de que esses segmentos são alvos. E isso se reflete, nos últimos anos, em raríssimos casos de policial matar uma travesti na pista ou matar um gay – coisa que era muito frequente em anos passados porque não havia uma conscientização desses agentes, de respeito à cidadania da população LGBT. Segundo que dentro dos próprios quarteis e associações da polícia civil há cada vez mais militares e policiais assumidamente gays, transgêneros e lésbicas, incorporados, fazendo campanhas e denunciando, dentro de seus regimentos ou das suas delegacias, quando há qualquer tipo de homofobia por parte da polícia.

DIADORIM – Qual seria a solução para corrigir (ou diminuir) essas divergências entre os números da violência contra LGBTI+ nos dados oficiais e nos levantamentos da sociedade civil?
LUIZ MOTT –
Karl Marx dizia que ser radical é cortar o mal pela raiz. De fato, nós gostaríamos e pretendemos erradicar a homotransfobia no Brasil, mas é difícil. Porque mentalidades não se mudam por decreto. É importantíssima a criminalização da homofobia decretada pelo STF, recentemente. Porém órgãos públicos têm que cumpri-la e continuar apoiando até que finalmente o Congresso aprove uma lei – já que até hoje se recusa a criminalizar legalmente, não apenas judicialmente, como aconteceu pelo STF, a homofobia, a transfobia, a lesbofobia, etc. Aliás, o poder Judiciário é o que mais tem sido solidário e moderno em relação às justas reivindicações do movimento LGBT, enquanto que o Congresso é omisso e o poder Executivo idem. Lula teve maioria no Congresso, podia perfeitamente ter aprovado a criminalização da homofobia, mas com medo dos evangélicos e refém dessa intolerância machista e moralista homofóbica de [Silas] Malafaia, de [Marcelo] Crivella e de tantos outros da Igreja Universal. Dilma recebeu R$ 10 milhões da [Igreja] Universal na sua campanha – e daí ela ter dito essa abominação: “feliz a nação em que Deus é o Senhor”. Então o poder Executivo sempre foi muito leniente, muito covarde. E Dilma foi a primeira presidente da República a ostensivamente hostilizar o movimento LGBT, como proibir o kit anti-homofobia, que tinha sido aprovado pelo Conselho Federal de Psicologia e pelos órgãos de educação – o material todo pronto, que custou R$ 5 milhões de uma dotação governamental, serviu como moeda de troca com os evangélicos, que estavam para denunciar o [Antonio] Palocci, para calar as pressões e ameaças evangélicas.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em 2014, o blog Alerta Total publicou uma notícia afirmando que a Igreja Universal havia doado R$ 10 milhões para a campanha de reeleição de Dilma Rousseff (PT).

Além de não comprovada, a informação foi desmentida pela assessoria de imprensa da Igreja, que, em nota, chamou o texto de “odioso preconceito” e “chacota gratuita com a fé de milhões de adeptos da fé cristã”.

O kit anti-homofobia, que ficou conhecido no Brasil como “kit-gay”, seria distribuído em escolas públicas brasileiras como parte do projeto Brasil Sem Homofobia. Em 2011, após pressão de parlamentares conservadores, o governo Dilma vetou a circulação da cartilha. O material custou cerca de R$1,9 milhão.

DIADORIM – Você foi a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, devido à ausência de políticas públicas voltadas à população LGBTI+ naquele governo. Considerando o pouco avanço nessa questão de lá pra cá e a eleição subsequente de um presidente sabidamente LGBTfóbico, você acredita que a deposição dela foi realmente a melhor opção?
LUIZ MOTT –
A presidente Dilma foi o mandatário da Presidência da República mais homofóbica da história do Brasil. Ela falou mal da homossexualidade, ela proibiu materiais produzidos pelo movimento LGBT para capacitação de professores e alunos contra a homofobia, ela proibiu filmes e vídeos de prevenção da Aids para homossexuais… Enfim, foi uma presidenta assumidamente homofóbica – embora demagógica, porque […] quando se candidatou, ela recorreu aos aliados LGBTs do PT. As duas vezes [que concorreu à Presidência]. Há fotos dela prometendo mundos e fundos para o movimento junto às lideranças LGBTs do PT e dos partidos de esquerda. Eu apoiei o impeachment sobretudo pela fraude eleitoral, a propaganda enganosa que ela vendeu. Um Brasil parecendo “Alice no País das Maravilhas” e, na verdade, já tinha 13 milhões de desempregados, que já se sabia. De modo que não foi apenas porque ela não propôs políticas públicas para a população LGBT; foi pela sua ação homofóbica, pela péssima administração e toda a corrupção. Que embora o ex-presidente FHC tenha dito que ela é uma mulher digna e honesta, mas ela não apurou inúmeros casos de corrupção que se revelaram depois.

DIADORIM – Mas, em 2018, no segundo turno, você apoiou a candidatura de Fernando Haddad (PT). Por quê?
LUIZ MOTT –
Para a sucessão de Dilma, eu apoiei aberta e publicamente o Haddad. […] Eu chamei Haddad de “Salvador da Pátria”, embora ele tenha sido o Ministro da Educação que vetou o Kit Anti-Homofobia – e assumiu que foi ele mesmo. No entanto, eu o apoiei porque era a barbárie ou a civilização que esperávamos que continuasse no Brasil; em termos de direitos humanos, em termos de combate à corrupção. […] E eu fui petista do primeiro grupo de filiação do Partido dos Trabalhadores aqui em Salvador. Tem foto minha ao lado de Lula no primeiro discurso que ele fez em Salvador, na fundação do PT [na capital baiana]. Agora, eu sempre fui, há mais de uma década, inimigo declarado de Bolsonaro e seus filhos homofóbicos. […] Obviamente que foi a pior escolha que os brasileiros fizeram, elegendo Bolsonaro, porém o impeachment de Dilma mais da metade da população brasileira, as pesquisas revelam, era a favor. Pela incompetência, pela arrogância, pela manipulação de dados estatísticos (e não vou falar nem das pedaladas). O Congresso aprovou o impeachment, o Senado aprovou. O STF considerou que foi legal. De modo que eu não tenho nenhum escrúpulo de ter apoiado o impeachment de Dilma. Pelos elementos da época e seguindo a opinião dos senadores, deputados, dos ministros e da população brasileira, na época, o contrário é que seria ditatorial. Não aceitar a voz do povo e dos nossos representantes, de todos os milhões de eleitores que os deputados e senadores representam.

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