Dennis Pacheco, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foto: Divulgação
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Passou da hora de superar a falsa representatividade LGBTI+ na mídia

Para pesquisador, enquadramento de populações LGBTI+ na imprensa ainda é escandaloso ou raramente ultrapassa barreira do entretenimento

A reportagem inaugural da Diadorim trata dos dados produzidos pela equipe do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, da qual faço parte, no 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, evidenciando a invisibilização da população LGBTI+ nos registros oficiais de violência nos estados.

Por ser estruturante, não é um acaso que a heteronorma nos invisibilize no setor da segurança e nos mantenha à margem também nos outros setores da política pública. Como já é bastante evidente que o Estado não está preocupado com a população LGBTI+ — o que é notável pelo fato de não ter sequer registros demográficos quaisquer de nós, vivos ou mortos (e pela recusa do IBGE de nos incluir no Censo 2021) –, cabe uma discussão do papel desempenhado pela sociedade civil, especialmente pelos veículos de comunicação na produção de nossa invisibilidade. Nossa exclusão não está restrita apenas às políticas de Estado (e especialmente de governo), encontra-se difusa também entre discursos e práticas da sociedade civil: enquadramentos heteronormativos e LGBTfóbicos se retroalimentam.

A filósofa Judith Butler, importante expoente dos estudos de gênero e sexualidade, cunhou o conceito de enquadramentos de poder, um tipo de moldura ou lente que prende nossa perspectiva a um determinado foco ou imagem a fim de revelá-los ou colocá-los em evidência, enquanto, ao mesmo tempo, oculta o que está de fora da moldura.

No livro “Quadros de Guerra”, Butler discute as formas com as quais esses enquadramentos produzem, por meio das representações que constroem, vidas dotadas de capacidade, poder, virtude e beleza. Capazes de produzir comoção, os enquadramentos geram vidas dignas de celebração, bem como mortes dignas de luto. São, portanto, igualmente capazes de produzir vidas indignas e desprovidas de importância, tanto por meio das imagens que emolduram, quanto por meio daquilo que deixam de fora do quadro.

A noção de enquadramento reorienta nossas perspectivas justamente porque desloca a centralidade da representação. Revela que tão importante quanto abordar pessoas, pautas e símbolos LGBTI+ é a forma com a qual somos representades.

A priorização de homens gays brancos, ricos e de performance heteronormativa sobre todas as outras possibilidades de existência LGBTI+, seja na produção artística, seja na jornalística, gera uma distorção que nega a diversidade da sigla. Nega a nós, não-branques, não riques e de performances inadequadas à heteronorma, qualquer possibilidade de reconhecimento naquilo que se pinta como sendo o quadro da identidade LGBTI+.

Neste sentido, não é à toa que pessoas trans, em especial mulheres trans negras e pobres das regiões Norte e Nordeste figurem os noticiários sempre a partir de enquadramentos criminais: conforme apontado pela Antra, nove em cada 10 notícias utilizando o termo “travesti” são sobre crimes, frequentemente espetacularizados e enquadrados como esquetes de comédia. A perversidade do enquadramento midiático das questões e populações LGBTI+ se faz escandalosa. Nossas prisões, mortes, espancamentos, roubos e abusos são entretenimento.

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Paralelamente, o enquadramento das figuras LGBTI+ positivadas raramente ultrapassa a barreira do entretenimento. Há muito, especialmente no Brasil, figuras públicas LGBTI+ reacionárias, brancas, masculinas e heteronormativas nos [des]representam no segmento do entretenimento focado em celebridades.

Ainda que, como bom cientista social, eu adore uma boa fofoca, acho essencial reconhecer que a preponderância desse enquadramento, em detrimento de todos os outros, não deixa de demarcar um lugar específico a “nossas” existências públicas. Nossas entre aspas porque negres como eu inexistem nesse lugar. Esse espaço é positivado justamente porque exclui a mim e a outras “existências abjetas”. Tão importante quanto entender o que esses enquadramentos revelam é se atentar àquilo que eles ocultam: nossa luta coletiva por direitos civis, categoria de direitos mais fundamentais, como o direito à vida e à não discriminação.

Espaços como a Diadorim são fundamentais para transformarmos o enquadramento da população LGBTI+ a partir de práticas inadiáveis: enegrecer, indigenizar, descolonizar, transgenerizar, deselitizar e acessibilizar as produções midiáticas. A partir de nós, para nós e para todes.

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Dennis Pacheco

Mestrando em Ciências Sociais e Humanas na Universidade Federal do ABC e membro do Grupo de Pesquisas em Segurança, Violência e Justiça (SEVIJU-UFABC). É pesquisador no Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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