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internacional

Talibã promete terror para a comunidade LGBTI+ do Afeganistão

Rápido retorno do grupo extremista ao poder renova pânico entre minorias sexuais e de gênero — mas elas nunca se sentiram seguras

Tradução: Leandro Ramos

LONDRES — O Talibã marchou sobre Cabul em 15 de agosto. O mundo assistiu com espanto aos Estados Unidos e à Grã-Bretanha, dois dos supostos faróis da democracia, começarem a retirada das suas tropas do Afeganistão, causando pânico generalizado na capital do país, o colapso iminente do governo afegão e o restabelecimento do domínio do grupo extremista. Ashraf Ghani, o presidente deposto, fugiu em um pesado helicóptero, reaparecendo dias depois nos Emirados Árabes Unidos. Ironicamente, de acordo com o Financial Times, Ghani justificou que a sua saída do território evitaria o caos e o derramamento de sangue. A embaixada russa em Cabul disse à Reuters que Ghani fugiu com milhões de dólares do orçamento do Estado.

Agora, o que esperar dos líderes talibãs e sua interpretação estrita da Sharia, a lei islâmica, são especulações generalizadas.

Os meios de comunicação estão chamando o novo regime de “Talibã 2.0”, uma versão atualizada de seu movimento religioso-político e militar. O novo Talibã, que agora se refere a si mesmo como o “Emirado Islâmico do Afeganistão”, incluiria uma mistura de mídia social (o que quer que isso signifique), nova legislação baseada em sua interpretação do Corão e uma abordagem geopolítica mais “palatável”. As declarações do porta-voz Zabihullah Mujahid são possivelmente promissoras apenas para aqueles que estão pouco familiarizados com as histórias enganosas do grupo. Para a maioria que ainda considera o Talibã terrorista ou extremista, o “2.0” provavelmente se pareceria com um Ebrahim Raisi (atual presidente do Irã) com esteroides, recebendo ordens diretas de Mussolini.

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Mas o que quer que mude nas promessas do Talibã “repaginado”, a população LGBTI+ afegã sabe bem o que esperar. Sob a “versão” anterior do reinado de terror do Talibã, que durou de 1996 a 2001, as pessoas LGBTI+ se arriscavam a ser apedrejadas, enforcadas, sofrerem amputações brutais ou terem suas cabeças decepadas. No entanto, é crucial compreender que mesmo antes da insurreição do Talibã, o Afeganistão era um território perigoso para a população LGBTI+, e a maioria das pessoas se aterrorizavam com a possibilidade de serem identificadas como gays. O jornalista e ativista afegão-americano Nemat Sadat escreveu que durante décadas a homossexualidade no país foi punida com a morte.

O Talibã procura apagar a história e as atitudes dos afegãos em relação à homossexualidade, pois a construção da masculinidade afegã está longe de ser simples. Como relatado por AnnaMaria Cardinalli em seu livro “Crossing the Wire”, há um entendimento intelectual de que a homossexualidade tem sido há muito um atributo normativo na cultura afegã. Os achados antropológicos de Cardinalli enfatizam os estudos etnográficos sobre as “características” afeminadas dos afegãos persas. A homossexualidade no Afeganistão representa um desconforto para o regime talibã, uma vez que os homossexuais no Afeganistão não são a minoria que o regime gostaria de retratar. Cardinalli afirma em seu livro que Kandahar, uma cidade de mais de 600 mil habitantes, tem uma porcentagem muito grande de homens que admitem ter relações sexuais com outros homens — uma proporção alegadamente muito maior do que pode ser encontrada nas capitais liberais ocidentais.

Documentário da AFP, em 2017, mostrou a luta de meninos afegãos para fugir do “bacha bazi”

Foto: Reprodução/YouTube

Esse não é o único segredo público. Outra mostra bem documentada de atração pelo mesmo sexo por homens afegãos é a prática notória do “bacha bazi”, os “meninos brinquedos” ou “meninos dançantes”, em que meninos de até 9 anos são coagidos a “entreter” homens adultos usando roupas femininas e maquiagens pesadas. Alguns desses espectadores têm quase 80 anos. A única intenção desses homens, além da autoindulgência, é preparar esses meninos para serem parceiros sexuais e companheiros.

Os profundos sentimentos de desejo e atração sexual dos homens afegãos por meninos menores de idade já são conhecidos há muito tempo. Acadêmicos que estudaram esse fenômeno argumentam que a prática se tornou evidente durante os anos 1980, quando os comandantes mujaheddin começaram a recrutar jovens garotos durante visitas às tribos e vilarejos, e mais tarde os usavam para satisfazer seus desejos sexuais.

Esse excesso de afeto deixa os homens afegãos desconfortáveis com o fato de muitos deles terem desejos por pessoas do mesmo sexo. Também é comum entre as tribos afegãs que os homens usem cartilhas de rímel, henna nas costas das mãos e pintem as unhas. Em 2002, fotografias de felizes combatentes talibãs com maquiagens pesadas, unhas pintadas e segurando flores foram encontradas em Kandahar pelo fotógrafo Thomas Dworzak. Essas fotografias foram posteriormente expostas no Barbican Centre, em Londres. As fotos mostravam os combatentes talibãs satisfeitos em terem seus retratos feitos de uma maneira tão feminina. Talvez esses exemplos tenham servido aos propósitos do mulá Omar quando chegou ao poder e fez da homossexualidade um crime punido com pena morte no Afeganistão.

Hoje, apanhados entre o ressurgimento do Talibã e o abandono das tropas americanas e britânicas, as perspectivas das minorias sexuais e de gênero no Afeganistão não são nada menos que assustadoras.

O estilo de governo do Talibã e sua hipócrita condenação da homossexualidade representam uma perspectiva ameaçadora para a legitimidade e a vida da população LGBTI+ do país asiático. Isso não quer dizer que sob a liderança anterior de Ghani os LGBTI+ afegãos estavam desfrutando de uma existência pacífica. No Afeganistão, as minorias sexuais e de gênero que discordam das doutrinas religiosas sempre sofreram intimidação, perseguição, prisão e morte. Muitos refugiados transgêneros afegãos preferiram fugir para o Irã e o Paquistão — onde também existem penas severas para a homossexualidade — em vez de permanecer no Afeganistão sob o governo de Ghani.

Tem havido, ao que parece, um medo bem fundamentado de intimidação, perseguição deliberada, provocação da sociedade, tortura e probabilidade de execução. Nos termos do artigo nº 130 do código penal afegão, a atividade sexual entre pessoas do mesmo sexo é proibida, e a pena máxima é a morte.

Em 2015, a ILGA World, a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais, relatou que um tribunal de justiça “paralelo” no Afeganistão condenou à morte três homens gays (um deles de 17 anos). De acordo com a organização, eles foram esmagados por um muro de tijolos de quase 5 metros de altura. Em 2017, o Departamento de Estado dos Estados Unidos relatou que a comunidade LGBTI+ do Afeganistão sofreu vários assédios sistemáticos, incluindo estupro e prisão pelas autoridades estatais.

‘Espectro aterrorizante’

Após a tomada oficial do Afeganistão pelo Talibã, nas últimas semanas, e com sua ideologia anti-LGBTI+, a situação dessa população tende, sem dúvida, a piorar. Gul Rahim, um juiz talibã ao estilo Osama bin Laden, se encanta ao falar em mandar cortar mãos e pernas como punição por pequenos crimes, e revelou no mês passado sua visão de justiça para as minorias sexuais e de gênero. Em entrevista recente, Rahim defendeu que os gays deveriam ser mortos por apedrejamento ou esmagados por paredes com mais de 3 metros de altura. Rahim parece orgulhoso ao pronunciar estas horríveis sentenças para homossexuais, pois o grupo Talibã percebe que estas ações são perfeitamente justificáveis sob sua interpretação da “lei islâmica”.

Como era amplamente previsto, as pessoas que conseguiram escapar antes da tomada de controle do Talibã forneceram descrições aterradoras da situação em Cabul. Os sites de notícias Yahoo e Pink News relataram a história de um jovem bissexual afegão que fugiu do seu país enquanto as forças norte-americanas discutiam os “termos” da retirada do Afeganistão com o Talibã. Ele descreveu a vida sob o governo do presidente deposto, Ashraf Ghani, como “um espectro aterrorizante”.

De acordo com o rapaz, ele e os amigos tiveram que se esconder com frequência das forças policiais afegãs, por medo de serem espancados, presos ou mortos. Se já tinha uma forte aversão às orientações políticas de Ghani, agora se sente de alguma forma sortudo por ter deixado Cabul em direção à Europa, embora seu processo de asilo tenha sido uma jornada turbulenta. O entrevistado pagou por uma viagem clandestina e, quando chegou ao continente europeu, seu pedido de asilo foi equivocadamente recusado. Seu status legal ainda está por ser resolvido.

Em outra reportagem, na rádio BBC, Abdul, um jovem afegão gay de Cabul disse que está escondido na casa de sua mãe, temendo por seu futuro e pelo que pode ter acontecido com seu namorado, que ele não vê há semanas. “Os soldados do Talibã estão por toda parte”, disse o rapaz, que na semana passada esperava concluir seus exames finais na universidade. Aos 21 anos, Abdul, que já teve sua vida marcada por uma guerra sem fim e pela perda de amigos, disse encontrar pouco sentido na vida. Ele agora tenta escapar do Talibã e deixar o país.

Nos últimos dias, os canais de notícias têm mostrado cenas de calamidade bíblica no Aeroporto Internacional Hamid Karzai, na capital. Pessoas desesperadas foram filmadas agarrando-se ao trem de pouso de um avião militar C-17 dos EUA que decolava. “Eles não são loucos”, argumentou Abdul, “são apenas seres humanos extremamente desesperados”.

O site Listening to Lesbians informou que à medida em que o Talibã assume o poder no Afeganistão, a comunidade lésbica tende a sofrer um grau insuportável de opressão. Não apenas pelo simples fato de serem mulheres (e espera-se que o Talibã implemente um conjunto de regras rígidas como interpretação da lei islâmica), mas também porque sua homossexualidade será punida com a morte.

Em Londres, pessoas foram às ruas pedir o fim da violência no Afeganistão

Foto: Ehimetalor Akhere Unuabona/Unsplash

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A verdade é que apesar das recentes declarações do Talibã na mídia, essas minorias sexuais e de gênero estão agora cercadas por uma organização de gângsteres teocráticos com sede de vingança. Se a história serve de aviso, como bem sabe o jovem Abdul e muitos outros, o Talibã irá bater de porta em porta procurando e matando qualquer um que represente uma ameaça para o grupo ou para sua visão do Islã. Não há tempo para o conformismo e não há muita escolha para os que ficaram para trás. Para ter qualquer chance de sobrevivência, a população LGBTI+ no Afeganistão deve submergir. Novamente, Abdul está muito consciente de que os talibãs encontrarão e matarão os que não conseguiram escapar.

O analista político Charles Moran, representante da Log Cabin, uma organização LGBT ligada ao partido Republicano dos Estados Unidos, também falou sobre o perigo iminente que o Talibã representa para as minorias de gênero no Afeganistão. A uma fonte de notícias LGBTI+ do sul da Califórnia, Moran criticou o presidente norte-americano Joe Biden por não fazer o suficiente para salvaguardar a retirada do povo LGBTI+ do Afeganistão e oferecer-lhes o status de refugiados. “Não há dificuldade para entender que a restauração do Talibã ao poder representa a pena de morte para os LGBTI+ afegãos”, afirmou.

A jornalista Mary Kay Linge escreveu no New York Post que a população LGBTI+ afegã tende a ser exterminada pelo Talibã no estilo das ações do Partido Nazista de Hitler.

Organizações de apoio a LGBTI+ estão tentando fazer o melhor para pressionar seus governos a assumir compromissos de ajudar os refugiados afegãos a sobreviverem e se estabelecerem em outros países. Stonewall, uma organização de apoio LGBTI+ britânica, está pressionando o governo do Reino Unido a ser resoluto e fornecer uma rota segura e asilo para os LGBTI+ afegãos. A ILGA World tem incentivado os países ocidentais a abrirem suas fronteiras e receberem voluntariamente refugiados e solicitantes de asilo LGBTI+ do Afeganistão.

Em resposta à ILGA, o governo do Canadá se comprometeu a receber 20 mil afegãos, dando prioridade à população LGBTI+. Outros grupos de apoio também pediram aos Estados Unidos e a outros países que façam mais pela população LGBTI+ afegã, já que o tempo está se esgotando. O prazo dado pelo Talibã para que as tropas norte-americanas e britânicas deixem o Afeganistão é 31 de agosto. Caso os países passem dessa data, “isso vai provocar uma reação”, disse o porta-voz Suhail Shaheen.

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