Arte: Tomaz Alencar/Agência Diadorim
comportamento

Tenhamos orgulho até que ele não seja mais necessário

No enfrentamento ao ódio e à discriminação, diz psicóloga Mônica Gongalves, o orgulho assume lugar de um amuleto e serve de proteção

São muitas as histórias que nos marcam na vida, que seguem vívidas mesmo quando a poeira do tempo insiste em deixar quase tudo cinza. Alguns pacientes e as tramas que trazem na clínica são assim também, resistem àquilo que a memória teima em ocultar.

Dentre essas muitas tramas, eis uma que segue comigo: em certo momento, tive uma paciente que, embora não tivesse mais episódios de pânico havia muitos anos, não saia de casa sem uma pílula do remédio que continha as crises. Era sempre curioso, vez ou outra engraçado: não havia celebração de “mais um dia” vivendo sem o quadro que não fosse acompanhado também do lembrete: “mas caso precise, o remédio segue aqui”.

Foram anos assim, seguidos e tão bem sucedidos que já não se sabia se a ausência do pânico havia lhe poupado de usar o remédio, ou se aquele único remédio nunca tomado é que lhe salvava de novas crises.

Fosse um, fosse outro, não se podia deixar de se observar que, do alto de sua máxima des-função e des-necessidade, o tal objeto — pequeno, minúsculo, exíguo — ficou imbuído de poderes. Aquele único remédio, indefectível, virou um amuleto: um objeto fetiche, superpoderoso, com o qual se podia caminhar, trabalhar, ir ao cinema, comprar uva na feira, encarar a fila do banco ou o estresse do filho adolescente. Com o amuleto, ela podia viver. Podia existir livremente. Seu amuleto lhe deu a velha nova vida que tanto almejava, devolveu a possibilidade de ela ser quem era e a coragem de experimentar essa possibilidade, como concebia ter sido possível outrora.

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Fui provocada pela querida equipe da Diadorim a pensar a autoestima e o orgulho LGBTI+, assim como de todos os grupos marginalizados. Imediatamente fui capturada pela contradição. Pensei comigo: logo eu, combatente de todo o orgulho, militante contra a autoestima, ativista pela queda de toda forma de apreço demasiado por si próprio. Mas topei o chamado e essa história — certamente, não à toa — voltou imediatamente à cena, luminosa com todas as cores que o tempo e a memória não puderam apagar.

Deixem-me explicar: é bom gostar de si, nada contra. Mas é fato que, na mesma medida em que todo ser humano tem motivos para nutrir certa estima por si próprio, tem tantos outros para não. Sobre essa dinâmica infindável e incorrigível, em que nunca se pode repousar exclusivamente sobre um ou outro polo, venho aprendendo que tanto mais livre é quem pode se libertar de qualquer deles, pois sendo duas faces de uma mesma moeda, para o bem ou para o mal, tendem a funcionar como clausura e operam igualmente como prisão.

Mas voltemos à paciente. Embora tantas vezes cômica, quase risível — e talvez por isso —, a história não deixava de ser dramática. E se é fato que certas doses de autoestima mais envenenam que protegem, é igualmente fato que somente quem já sentiu a morte soprar no pescoço e falar ao ouvido sabe o valor de um amuleto.

Nós não estamos apenas caminhando pelo mundo, distraídos, desavisados. São muitas as mortes que nos falam e muito diversas suas vozes: “anormal, preto, doente, nojenta, bandido, aberração, animal, louca, traveco”. Nós, LGBTI+, pretos, deficientes, loucos, favelados, caminhamos todo dia, às vezes literal e irremediavelmente, pelo vale das sombras da morte. Quem, nessa condição, prescindiria de um amuleto?

Sigo achando, mais por teimosia epistemológica que empirismo, que existe realmente, até para nós, um orgulho a ser combatido. Um orgulho-prisão, deletério, narcisista, cheio demais de si. Mas, contraditória e dialeticamente — sempre — há também um orgulho a ser nutrido: esse orgulho-coragem. Orgulho, nesse caso, é amuleto, como o remédio da Cláudia*. É esse orgulho que capacita, um orgulho-amuleto que dá coragem, que dá permissão para se montar, usar o black, tirar o sutiã, se apaixonar e caminhar de mãos dadas, quebrar a hegemonia, romper padrões normativos sobre ser, falar, vestir, desejar. É nele que está a possibilidade de viver, só viver, do modo que se é.

Haja orgulho! E haja coragem pra ser quem se é e seguir caminhando exatamente como se é em um mundo que insiste em patologizar, condenar, usurpar, ofender, violar, violentar, obstruir, aviltar, aniquilar certas formas de ser no mundo, que só por coragem e orgulho mesmo teimam e insistem em persistir. Resistimos, sabidos de que somente quem encara a morte de frente todo dia entende tamanha força de celebrar a vida.

Volto novamente à paciente. Cláudia, a sujeita da história, um dia tirou a pílula da bolsa. Já não tinha mais validade, estava vencida. Vencida porque ultrapassada a data de validade; vencida, outrossim, porque ela venceu: a força, agora, estava com ela. Pude, então, vê-la caminhar livremente, sendo quem era, sem amuleto, sem patuá.

É bom gostar de si. Mas melhor ainda é poder ser quem se é quando o que somos não é motivo de orgulho porque também não é alvo de ódio. O orgulho que desejamos manifestar não é esse, filho do ódio. É outro, pura manifestação do espírito — da subjetividade, da singularidade, do desejo: disso que é de cada e cada um dá o nome que quer. Mas esse orgulho só pode nascer de um pai que ainda não está pronto. E esse orgulho dos dias atuais é o amuleto que vai nos conduzir na travessia para o novo lugar: nos orgulhemos por construirmos um outro mundo, por nosso orgulho servir à construção de um mundo em que o orgulho de ser quem se é não precise existir. Até lá, mantenhamos nosso amuleto: até que não seja mais necessário, até que possamos descartá-lo, até que seja inútil, pura vaidade. Até lá. Por ora, até que o ódio seja vencido, nos orgulhemos. Haja orgulho para tanto ódio, mas haja, sobretudo, orgulho pra tanta vida: tanta vida a ser vivida, tanta vida a ser celebrada, tanta vida a ser orgulhada. Haja orgulho!

* Nome alterado para preservar a identidade da paciente.

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Mônica Gonçalves

Psicóloga e psicanalista. Doutoranda em Saúde Pública. Discute relações raciais na saúde.

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